Textos

O espeto
          A frente da casa, toda de vidro. Centenas de pedacinhos de vidros coloridos formavam o vitral. Assim que a vi apaixonei-me. De fora para dentro, um prisma, de dentro para fora, um caleidoscópio, uma enxurrada de luzes colorindo as paredes, o teto, a escada. Um sonho daqueles  que sonhamos acordada.
          Sonhei tanto que um dia ela foi materializada, as luzes e as cores se acasalando na brancura do mármore espelhado. Adentramos, mas  antes que atravessasse a porta, fui barrada. As instruções vieram imperativas, cabais, enfáticas. Eu moraria na soleira da porta equilibrando-me entre o dentro e o fora. __ Posso me sentar? __ Perguntei. __Não, você vai ficar deitada.
          __Posso, durante o dia, ficar de pé?
          __ Não, você vai ficar deitada. __Reiterou.
          __ Posso me colocar em decúbito dorsal, deitar de lado para olhar a rua?__ Ele não respondeu nada, desceu os três degraus que limitavam a área interna, atravessou o gramado, ultrapassou o portão e chegou à calçada junto à caçamba com os restos da construção. Pegou uma estaca e voltou para me mostrar quem é que mandava. Ergueu-a bem alto e a desceu com força atingindo-me na cara. Caí. Antes que me levantasse, ergueu-a novamente, e com toda a força trespassou meu tórax e a enterrou uns dez centímetros no mármore.
          Gritei muito, antes e pós o terror, o que o deixou irritado. Aproveitou-se da minha boca  aberta e arrancou a minha língua. Sumiu casa adentro e  em seguida ouvi a descarga.
         Ferida, incrédula eu não controlava a náusea. As lágrimas e o sangue se juntando aos espasmos hemorrágicos que o estômago jorrava. A sujeira foi ignorada, o mosaico espetado também, só o vitral  era  avistado e admirado. E ele não se  deu por satisfeito. No  dia seguinte voltou com a tesoura, lamentei os meus cabelos, quando os tive agarrados, mas sofri pouco, logo fui decapitada. E a cabeça,  levada pelos cabelos, foi depositada no topo da escada.
          Do alto, eu observava o mosaico deformado na entrada. Aquilo não era nada,  o importante era o  restante da casa inundada de luz, muita luz, tanto

que cegava.  E o corpo espetado tornou-se anestesiado. Se a porta não estivesse aberta eu nem teria percebido, quando no dia seguinte ele voltou com a tesoura e recortou, do corpo, as mãos e as levou para a cozinha. Depois do almoço elas foram mandadas para a área de serviço junto com os braços recém recortados.
         Do alto da escada, eu lamentava o mosaico colorido perdendo as formas.         Morri e morria todos os dias quando ele pegava na tesoura e me recortava. Recortou-me, três dias depois, os pés, e da soleira da porta, jogou-os portão a fora. O clic do controle remoto o trancou pelo lado de dentro. Nunca mais ele fora aberto.
          Mais um dia e as pernas foram recortadas e arrumadas, esteticamente, cruzadas no sofá da sala. Impotente eu me conformava com os desenhos que a luz do vitral rabiscava nelas.  No  quinto dia, ele voltou com a tesoura e recortou-me as mamas. Elas foram levadas para o quarto que seria,  um dia, das crianças.
          Do topo da escada eu avistava o mosaico, já, praticamente sem forma e espetado na soleira da porta.
          O primeiro final de semana, eu tive as coxas acariciadas, recortadas e levadas para o quarto. Guardadas em um canto não avistado pelo ângulo da escada. Deste, só era visível, quando a porta estava aberta, o tronco espetado e os joelhos na soleira da porta.
          Um  mês depois, eu tive uns minutos de atenção, arrancou a estaca e carregou o tronco pela escada. Na porta, os joelhos solitários imploravam. Foram ouvidos e ganharam por companheira a cabeça que fora chutada.  Do alto da escada veio rolando até parar próxima aos joelhos, por pouco tempo. O vento  empurrou-a  pelo gramado até a grade do portão.
          A visão que eu tenho agora é a do lado de fora. A rua, os  transeuntes, admiradores do vitral e ignorantes do mosaico. O quintal e uma bola que veio do muro vizinho, o cão solto no início da noite e os joelhos na soleira da porta.  Trazida pelo vento  e bem amassada, uma folha de jornal.  Meu olho direito fechado na terra, o esquerdo num esforço supremo lê parte da notícia que é um emaranhado de palavras desconexas que tento juntá-las:  Natimorta, despedaçada, retalhada em postas... __ Duas linhas abaixo __ espalhadas pelos quatro cantos da casa... ___ “Anônima e amorfa sou manchete de jornal..”. __ Pensei.__ Mas ele nem sabe que nasci, quanto mais morta.  


Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 16/09/2017


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr