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Estação poesia
A manhã estava atípica, nublada, brumosa, fria. Passava das oito horas quando entrei na estação arrastando as malas. Três: uma menor com alças pendurada no ombro e duas grandes sobre rodinhas. Os agasalhos de cores neutras se multiplicavam, mas de vez em quando piscava um verde, um amarelo, um vermelho. Entre os muitos que circulavam, um casal espalhafatoso declamava teatralmente um poema de L.NÊS: Sucumbi/ Chafurdei-me/ Conspurquei-me/ Coabitei com os exus... __Perdi-me em reflexivos devaneios.
          Na fila, posicionei-me atrás de uma mocinha de ruivos cabelos que teimavam em escapar da boina, enquanto ela tagarelava sobre moda, eu só ouvia. O tempo feio e a viagem me deprimiam. Nem as notas arrancadas de um Estradivários   por um senhor da mesma cor de seus sapatos, bem ali, ao lado, me alegravam. Estava mesmo preocupada era com o horário. Eu embarcaria no trem que já estava atrasado, a fila não andava, e nem a passagem eu tinha.
          __Ei, eu estou falando com você. Parece não estar prestando atenção. Censurou-me o manequim ambulante.
          __Comigo? _Perguntei, olhando ao meu redor.  A especialista em moda retrucou. __ E com quem seria?
         __ Desculpa. __bati o indicador direito no relógio de pulso __ É o tempo.            Naquele momento, toda minha atenção estava centrada no gato que eu deixara sobre o muro de dois metros de altura, a espiar, embaixo, uma gataria ociosa e  louca para vislumbrar o que se passava a cinquenta metros da rua, dentro da casa  de janelas azuis. É dele, sempre fora, aquela moradia. Lembrança sombria e inexpressiva, exceto pelo fato de que lá, agora, balança um aviso no portão: casa do gato. Quando passei por ele, ergueu-se sobre as patas, arqueou o corpo deixando-o com  a forma de uma ferradura. Pensei que desceria, mas semitonou um miado, fechou os olhos e voltou a se espichar sobre o muro. Vinicius de Moraes materializou-se e me trouxe o esboço de um sorriso: Com um lindo salto/ Leve e seguro/ O gato passa/ Do chão ao muro. Ah, Poetinha!
          Atrás de mim, a fila estava grande. Uma moça  vestida  como uma princesa russa chamava a atenção,  principalmente da pessoa que me antecedia: __ Ela não  parece uma noiva do cinema antigo? __ Perguntou-me. Não respondi, limitei-me a um sorriso de Monalisa.
          __Você não tem uma opinião, quem é que nos dias de hoje usaria uma mantilha?
          __ Madona. __ Arrisquei, pensando em Nossa Senhora, que ela não conhecia.
         __Ah, essa usa mesmo, eu a vi num show, e sem nada por baixo. Percebi a confusão e achei engraçado. Passou rápido o momento de descontração.
          O trem chegou com seu barulho característico e o apito estridente ecoando pela planície. Lembrei-me no desespero de Mario Quintana: Não há nada mais triste do que o grito de um trem no silêncio noturno. Ele certamente deve ter razão, mas era dia ainda. Animei-me. Vermelho cor de sangue, imponente, ocupou a estação de um extremo a outro, e um princípio de tumulto se formou quando a fila andou. Perdi de vista a moça que estava na minha frente. Agradeci.
         Um funcionário conferiu a bagagem, outro perguntou meu destino, respondi que iria até o final. Olhou-me confuso, mas não questionou. Devolveu-me a passagem, e antes de guardá-la, sai arrastando as malas.
          Dentro do trem, a temperatura estava agradável, arranquei o casaco, dobrei-o em quatro, acomodei-o na cabeça e pensei no gato. Provavelmente, desceu pelo lado de dentro, farejou cerca de um pé acima do chão, e dirigiu um jato marcando o território que um dia, ingenuamente, pensei que pudesse ser partilhado. Embalada no sacolejo do trem, a imagem belíssima do felino congelou-se na minha vigília.  
          Acomodada no balanço, abri os olhos e observei a senhora de vestido e luvas azuis. O chapeuzinho com o arranjo de hortênsia, me lembrou Ana Karenina. Senti um arrepio.  Para afugentar o presságio, mentalmente declamei uns versos de Adélia: “Um trem de ferro é uma coisa mecânica/ mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, /atravessou minha vida, virou só sentimento.” __ Os meus sentimentos guardados nas malas, e os de Ana, fragmentados entre os trilhos. Ergui a cabeça o mais que pude para que a água dos olhos não fugisse.  
           Na primeira parada, Ana se foi, no chão, o papel rabiscado momentos antes: Fujo em meio a neblina, junto com razão. E antes que a porta se fechasse, ele foi saindo devagarzinho, embalando uma canção de ninar. Do ângulo em que eu estava, pude ver um pássaro explorar seu limite no horizonte, o poeta, o amarelo dos girassóis inexistentes, eu, o mundo dos surdos: entreguei-me à velocidade do trem.
          Por quanto tempo dormi? Da janela, só era visível o branco da paisagem e o vermelho do trem quando fazia uma curva. Naquela grandeza vetorial, as cores se acasalavam parindo o ocaso que inspirou Eunice: “No final da tarde/ o poeta fecha as janelas/cerra /imaginadas cortinas/ encolhe suavemente as asas/e encara o mundo/ nas quatro brancas paredes/ o tempo passeia finas unhas’’
       Ninguém conseguiu provar uma viagem no tempo, nem excluir sua possibilidade.  Por isso o tempo viaja, corre, corre desesperadamente espaço à fora e Pessoa é tão atual: Gato que brincas na rua/ como se fosse na cama/ invejo a sorte que é tua... O trem parou, ninguém subiu, ninguém desceu. Agarrei minhas malas e percorri todos os vagões sem cruzar com viva alma. A máquina abandonada, vazia, fria. O vidro da frente enterrado em mais de um metro de neve. No lado de fora, a floresta de coníferas era um museu de esculturas.  
          Por uma das janelas laterais, reconheci no borrão branco, o vulcão, há anos, adormecido. Do outro lado, os lagos repousavam gelados hibernando a vida do mundo aquático. E os pássaros fugindo do inverno, deixaram no lugar um silêncio invasivo. Em meio à bruma, a luz se agoniza.
           O trem era um corte na neve que em breve cicatrizaria.



Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 23/09/2017


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr