Textos

O que realmente aconteceu?
         Eu sou uma apaixonada por histórias, por “causos” ,e posso me considerar uma privilegiada com os  enredos com que tenho sido presenteada pela vida.    Outro dia, enquanto varria a calçada encontrei  Diquinha, uma vizinha na casa dos setenta anos, usa aliança na mão esquerda, mas não é casada;__ mas foi, e devolvida no dia seguinte __ afirma uma tia dela que sempre a visita; mora com uma irmã viúva, e é surda muda.
          Conheço-a há mais de dez anos, ela não conhece Libras, eu também não, nossa comunicação então não passa de uns sinais, uns gestos, umas mímicas que por falta de tempo passavam me despercebida de um sentido maior  que “dia bonito”, “dia frio”, “cabelo bonito”, “vou entrar”, “tenha um bom dia”.
          Enquanto varríamos a calçada, nesse dia, a irmã chegou, no momento que Diquinha erguia a mão esquerda e me mostrava a aliança no anelar. A irmã impaciente disparou: __ hoje, ela levantou falando disso, já faz tanto tempo...
         Eu respondi para a irmã, que havia pegado o bonde andando...  Mas a curiosidade misturada com a indiscrição obrigou-me a estender o assunto:  __mas como, qual foi a justificativa para esse desfecho?
          A irmã olhou para Diquinha, como se pedisse permissão. A preterida bateu com a mão direita na palma da esquerda como se pegasse alguma coisa e jogasse para trás do ombro, indicando o que passou, e acenava com a cabeça que sim. Com o indicador direito, tocou a ponta da língua, e com a mão esquerda aparava um discurso imaginário, que começou a ficar interessante.
          Diquinha contava com gestos, mimicas e caretas a sua história, ajudada pela irmã, e eu fui construindo a narrativa.  Ela,  descrevia, com as mãos e expressões faciais, o noivo alto, forte __ ela estufava o peito__ com o corpo com muitos pelos e uma cueca pelo meio da coxa.  Contou que foi agarrada, espremida na porta__ bateu com força com as costas de uma das mãos na palma da outra. __ A porta bateu..., __ bateu com força__ contou a irmã que sabia da história e ia ajudando na construção do meu entendimento.
        Diquinha encheu a boca de ar,  inflou  as bochechas, abriu muito os olhos e fez um barulho com a boca quando soltou o ar, como se algo estourasse. Com os braços apontava que ele caiu na cama,  virou os olhos e babou... A irmã a ajudava: __ela pensou que ele estivesse tendo um acesso, (identifiquei mais tarde que a palavra acesso foi usada no lugar de ataque epilético)  __ e acrescentou: __uma tia avó que morou em casa sofria disso, tinha sempre.
         Diquinha fazia uns gestos como se tivesse rasgando algo e me pareceu nervosa. A irmã interveio:  __ Ela rasgou a fronha do travesseiro e tentou enfiar na boca do noivo, como fazíamos com nossa tia __ e justificou __ pra ela não morder a língua.
         Diquinha empurrou a irmã, entrou na frente, e com uma expressão indignada, bateu na face e socava o ar como se lutasse com alguém. Eu, com toda a indiscrição, queria entender.  A irmã tomou a frente , novamente: __ É, foi desse jeito  , ele não entendeu que ela estava confundindo o jeito dele com o que acontecia com tia Juquinha em seus acessos, então bateu no rosto dela... No dia seguinte, ela estava em casa cedo, não quis voltar mais.
        Diquinha deixou a irmã “arrematando”  a história e foi saindo... Eu fiquei pensando: __Será que ela conseguiu contar o que realmente aconteceu?  
Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 02/07/2018


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr