A morte do leiteiro (Carlos Drummond de Andrade)
Versos brancos: Sem rimas
Versos livres: Sem métrica
“A morte do leiteiro”, título do poema, já dá uma mostra do tempo histórico: tempo de mudança, tempo de guerra, tempo de morte da produção artesanal para ceder o lugar à produção em massa, (cientificamente è impossível que dois corpos ocupe o mesmo lugar no espaço). O espaço é a cidade grande (morador na rua Namur, será Rio de Janeiro?). A morte do leiteiro é o retrato de um fragmento de um dia qualquer. O leitor tem a sensação de estar lendo uma noticia de jornal de uma cidade grande que poderia ter a data de hoje, de ontem ou de qualquer outro dia dos últimos 70, 80 anos.
Alta concentração da linguagem: palavras/sentidos/sentimentos: polissêmicos. A morte do leiteiro retratando/denunciando/registrando um fato social, essa palavra, leiteiro, não foi utilizada inocuamente; não foi o padeiro, não foi o lixeiro, não foi o sapateiro, foi o leiteiro, radical: leite, branco/puro/inocente primeiro alimento/vida, e nesse país “Há pouco leite” “e muita sede” “É preciso entregá-lo cedo”, mais tarde, pode ser muito tarde.
Balançando nas entrelinha o problema da fome, da exclusão, da má distribuição de renda, da desigualdade social..., no país; o primeiro fato social que encontramos no poema.
Segundo fato social é a proliferação da marginalidade, da violência. Difícil separar o bom do ruim. “ladrões infestam o bairro”. Não temos tempo de fazer a seleção, pois um outro fato social, também revelado, no poema, é o “pânico” que virou doença e evoluiu para epidemia: síndrome do pânico, doença dos tempos modernos. O próprio poeta já utilizou o tema em um outro poema: “Congresso internacional do medo”.
O homem revestido de medo não tem condição psicológica nem tempo para avaliação. “Mas este acordou em pânico” “ não quis saber de mais nada”. “ Liquidaram meu leiteiro” . O fato é narrado sem dramaticidade, sem alarde (como uma noticia de jornal, com um propósito: o poeta está transmitindo ao leitor que a matéria prima da literatura é a realidade humana (Aristóteles)) e essa é a realidade. Assim como “ Bala que mata gatuno” “Também serve para furtar ” “A vida do nosso irmão”. De maneira fria o poeta relata: “mas o leiteiro”, “estatelado ao relento,” “perdeu a pressa que tinha”. Estatelado, no dicionário: estendido, estirado, mas também admirado, espantado, parado diante da banalidade da vida. O poeta parece estar dizendo para que o homem se acostume às tragédias, uma maneira de se preservar a saúde mental “há sempre um senhor que acorda,” “resmunga e torna a dormir”. O poeta está dizendo que não só o mundo é outro, também tem que ser outra a nossa relação com o mundo.
Um outro fato do nosso cotidiano retratado no poema, é a correria, a pressa, a falta de tempo: “não tem tempo de dizer” “sai correndo e distribuindo” “Perdeu a pressa que tinha” só mesmo diante da morte pra perder a pressa. A velocidade que o mundo exige do homem a qual ele não se adaptou ainda, por isso o stress, o medo, o desequilíbrio emocional, o pânico, o engano, a confusão. “ Meu Deus, matei um inocente..” Meu Deus, nesse vocativo está explicito a única ação possível: confessar a culpa diante de Deus e ponto final, sem lamento, sem desculpa, por minha culpa, minha, culpa, minha máxima culpa.
É fato também, presente no poema, o predomínio da ignorância. A palavra “ignaro”, não se encontra lá, acidentalmente e nem por estilo, mas sinônimo da maioria, da quase totalidade da sociedade/cidade/desumanidade, consequência da urbanização “Nem o moço leiteiro ignaro,” “ sabe lá o que seja impulso” “ de humana compreensão”. Nem o moço leiteiro com sua pureza escapou da ignorância que se multiplica nesta sociedade capitalista, que avança por toda cidade em forma de violência, vileza, fome, falta de espaço, sobressalto. Nas entrelinhas, existe um ressentimento relacionado à urbanização “ leite bom que veio do ultimo subúrbio pra gente ruim na luta brava da cidade.
O poema com “cara de prosa”, na penúltima estrofe, começa a ganhar sentido de belo, de esperança, de poesia: “Estatelado ao relento”, parado... liberto..., “perdeu a pressa que tinha”, como se o poeta, nesse instante, invejasse a condição do leiteiro. É a morte nascendo da vida, contrários sempre advindos de seus contrários; o belo do feio, o grande do pequeno, e agora a morte que certamente produzirá a vida (renascer para os que creem). Esses versos trazem os opostos pressa e parado, não se sucedendo, mas coexistindo numa harmonia poética.
Mas, no último verso, o poeta se justifica e diz “a que veio”, em tempos de guerra todos andam armados e a arma do poeta é a poesia: Forma de expressão linguística destinada a evocar sensações, emoções e impressões por meio de união de sons, ritmo e harmonia que toca, enleva, encanta. Na última estrofe, o relato da “feiura”, da tristeza, das cores frias: branco do leite, cinza da madrugada, preto do beco (escuro da morte) é esquecido nas imagens criadas a partir “Da garrafa estilhaçada ” brilho/brilhante não mero esplendor. Os opostos se “acasalando” estilhaços/violência X sereno. “Da garrafa estilhaçada”, “no ladrilho já sereno”. Ambos os versos, também, nos remetem à ideia do fim e seu oposto: Quando se chega ao fim a única coisa que pode ser feita é recomeçar. Dos estilhaços não há volta. Não quebrou, não partiu, não trincou, acabou em fragmentos, estilhaços: centenas de pontos brilhantes espionando, alcovitando um encontro fortuito da pureza do branco/leite com o profano do vermelho/sangue “duas cores se procuram” “suavemente se tocam” “formando um terceiro tom”. Dessa relação à sexual, o poeta construiu a imagem da esperança com a figura do alvorecer: que venha esse bendito fruto “a que chamamos aurora”.
Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 05/04/2017