Textos

Os degredados filhos de Eva
                                                                                                    
                                                          Há uma estrela no céu
                                                          Que ninguém vê, senão eu                                                      
                                                                        (Garrett)              
                                                                      

          Ele fechou o paletó, ergueu os olhos para o céu cinza, __ vai chover. __Pensou. Ficou parado por, exatamente, 3 minutos, até sentir a primeira gota, e sorriu. Continuou sorrindo enquanto as gotas finas salpicavam o casaco. Desafrouxou o nó da gravata, sentiu os pingos escorrerem pelo seu rosto e chegarem salgados à boca, fazendo-o pensar: “Pai, homem chora, sim”.
           O céu era barra de chumbo, a chuva começava a ficar pesada.  Pensou ter ouvido alguém gritar seu nome. Quem poderia tê-lo seguido até ali? Não fora importante para ninguém, nem mesmo, para os pais. A esposa...  Aspirou o ar, bem fundo, até inundar e sufocar os pulmões.
          Ouviu seu nome mais uma vez. Olhou para trás e viu as bonecas sorrindo, estrategicamente, arrumadas na vitrine. Encheu os pulmões o máximo que pode, e atravessou a rua. Foi contra o impulso de fechar os olhos e correr. Guardou a chave do carro no bolso e entrou na loja. Aproveitou, não só para observá-las, mas também ser observado por elas que riam das lágrimas de quem fora deixado para trás, apenas com a possibilidade de seguir a si mesmo. E seguia.
          A boneca da direita, loura, cabelos longos e encaracolados, olhos azuis, corpo perfeito. O Ideal de beleza de uma filha..., de uma mulher. A irmã fora assim, antes de ser encontrada, aos doze anos, enterrada   na areia da praia. Faltava-lhe um braço, um olho. Fora violentada e tivera rosto desfigurado. O corpo encontrado, dois dias depois de desaparecido, por um cão, era o da irmã. O pai não resistiu, a mãe o seguiu. Um arrepio percorreu-lhe. “Ela era exatamente assim, uma boneca, o brinquedo do pai,” __Pensou e olhou ao redor para ver se mais alguém o observava, além das bonecas.
          Ele sabia, a mãe sabia, o pai os ignorava: __Homem não chora. __ Homem chora, sim. Ele retrucava.  Chorou e ainda chorava.
         A lembrança do pai  trouxe o  horário do analista. Olhou o relógio, olhou a vitrine e não resistiu uma última análise. A boneca da esquerda lembrava a mãe. Parecida com a mãe, era a mãe de volta: feia, a face esquálida, a pele macilenta, semelhante a um pergaminho bem repuxado sobre os ossos. E aquele chapeuzinho horroroso, ridículo. A mãe usava um idêntico quando não estava sóbria.  
          Ele pisava em seu próprio rastro, desde então. Andava em círculos pequenos, não se aventurava a ir além.  Atava o começo ao fim no instante de um passo. Para frente e para trás em paralelas coincidentes. Para cima e para baixo sem sair do prumo, como qualquer pessoa excêntrica, metódica.  
            Ele não sabia se a mãe se esforçara para manter a família..., se fora conivente ou se sentira impotente.  A verdade é que ela limpava da casa todas as evidências pegadas, apalpadas, acariciadas... As pernas da irmã no colo do pai. A mão do pai em seus passeios vermiculares, deslizando, explorando... E, no dia  que pegou, o pai gritou: __ homem não chora. Cristalizava, ali, o terrível destino: nenhum passado e o futuro escrito pela mão de Fausto.
           Aos doze anos, andava pela casa, olhando para baixo e segurando as lágrimas, __ homem não chora. E ele era mais que  um homem, era um irmão, era um filho, e chorava escondido.
          Naquele dia, a casa e a mãe mergulhadas no silêncio.  O mundo sumiu, por um instante, à sua volta enquanto ele experimentou a sensação de estar sendo observado. Procurou ao redor e encontrou a boneca esquecida num canto: loura, risonha, olhos semicerrados, azuis como os da irmã. Ela podia chorar, mas, se chorava não sabia. Ele chorava por ela.
         A casa era cheia deles. Apanhou o brinquedo pelas pernas, elas queimaram-lhe as mãos.__ Homem não chora  e numa explosão de fúria, arremessou-o contra a parede. Lá, no chão, inteira, os cabelos revoltos, brilhantes, sedutores. As pernas expostas! A boca  sorria. Ele entendeu como zombaria.
        Alcançou-a e a arremessou novamente, ela caiu próximo à cozinha. Em cima da mesa, a faca era uma seta. Pensou tê-la ouvido: __homem não chora.
E continuava sorrindo,  linda, os cabelos esparramados, os olhos a lhe espiar por entre as pálpebras. Seguiu a seta. Arrancou, com a faca, um dos olhos e o jogou pela janela. O olho vazado lhe censurava e alcançava o âmago. Da boca risonha, ouviu mais alto:__ homem não chora. Não choraria, pelo menos, não agora. Golpeou-lhe  com a faca no meio da face. Viu o sorriso se desmanchar no buraco rasgado entre o nariz e o lábio superior, mas não impediu a voz roufenha: __ homem não chora.  A faca tornou a golpear, agora, no meio da boca que num esgar produziu uma gargalhada e repetiu:__ homem não chora.
             Quando a jogou no lixo, ela tinha um braço erguido marcando um sinal de vitória.
Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 29/04/2017
Alterado em 29/04/2017


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Imagem de cabeçalho: raneko/flickr