Canção Cecilia Meirelles
Canção -
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecilia Meirelles, poetisa da 2ª geração modernista, tem sua obra voltada para a materialidade das intuições, das sensações, das percepções mais sutis da essência do espirito poético, num lirismo atípico para a época, ela consegue essa fusão complexa entre corpo e alma, espirito e matéria no espaço específico da poesia. Canção é um exemplo dessa complexidade, poema composto por cinco quartetos, (estrofes de quatro versos), extremamente ricos de musicalidade, de ritmo, de rimas, de figuras de pensamento e de palavras. Com uma linguagem que valoriza os símbolos, as imagens sensoriais têm na sua temática seu eu mais íntimo alimentado na introspecção. Embora os sentimentos pareçam ser as personagens principais da obra, minha analise tem um olhar direcionado para o espaço que vai deixando os sentimentos em segundo plano e se auto firmando como protagonista num discurso paralelo. Minha análise não tem a pretensão de se fundamentar nas teorias de Bachelard, mas é impossível não associá-las às leituras sobre esse elemento “espaço”, tão bem teorizado pelo autor.
Tomar o espaço como fio condutor de uma analise é torná-lo tão importante que muitas vezes os espaços descritos ganham muita importância, e, são compreendidos como personagens protagonistas. “Pus meu sonho num navio”. Isso acontece na obra “Canção”, da Cecilia, em que o navio (espaço escolhido, não só para transportar e testemunhar a morte do sonho, como para guardar esse morto, involucre, e servir-lhe de mortalha, fazendo-se de um santo sudário)__ É para ele, o navio, a tarefa, o trabalho de levar um condenado, de entregá-lo a morte, e saber que pra si, também não será diferente, não terá volta. __ “ e o navio em cima do mar”__ ali depositado, será no mar “enterrado”. __“depois abri o mar com as mãos/paroo meu sonho naufragar”,__ apesar do eu lírico fazer uso das mãos, ele não vê, não presencia a morte, vive-se então uma fantasia: é delegado ao navio a materialidade dessa agonia. _ “debaixo da água vai morrendo/ meu sonho dentro de um navio” __Até aqui o leitor tem a compreensão dos espaços, do sonho que não sendo mais possível ser alimentado, é depositado num outro espaço, o do navio que vai levá-lo, como um filho, sem se importar com o que vai lhe acontecer, não só é abandonado, mas deixado ao relento para morrer. Como uma boneca russa, uma matrioska, advém, então um terceiro espaço, o do mar que se encarrega de finalizar o intento, livrar, dos sonhos, o eu poético.
O espaço das mãos também merece uma atenção especial, observe que elas estão preenchidas com as cores das ondas que não estão nem fechadas e nem abertas, mas entreabertas, ou seja, vazou dali, escorreu, __”e a cor que escorre dos meus dedos” estão vazias e tão vazias quanto as areias desertas. __” Minhas mãos ainda estão molhadas/do azul das ondas entreabertas”. Atente-se, leitor, às ondas e às areias, porque as mãos, esse espaço limitado e preenchido com a cor azul (segundo Chevalier, o azul é a cor mais profunda e mais imaterial, mais fria das cores) não suportaram, “minhas duas mãos quebradas”. E nesse lugar ermo, “tudo estará perfeito”: “praias lisas, águas ordenadas”__ nesse espaço onde o eu lírico escolheu para dar fim, acabar, matar, encomendar o crime, entregar a vítima, ele tem sucesso, mas não foi fácil, Lembrem-se das mãos quebradas e dos “olhos secos como pedras” __ antes, eles choraram, “chorarei quanto for preciso”. Depois o mundo parece continuar, como se nada houvesse acontecido; ninguém parece notar o sofrimento interior do poeta até que uma outra obra se faz e o leitor navegue por espaços nunca antes navegados.
Fechando essa análise pelo viés do espaço, vamos levar todos esses elementos para dentro do poeta que se encontra contido na sua obra constituída por suas vivências, seus pensamentos e sentimentos; não querendo ser repetitiva, mas já sendo, como uma boneca russa, como uma matrioska, o poema vai se revelando para leitor num espaço mágico chamado poeta.
Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 15/06/2019