A casa das urzes
“Bento do Sul, 1850 — Agora, o sol está numa posição que abraça toda a casa, seus raios a envolve de uma maneira, que é possível ver um rosto, lá, no alto, pelo vidro da última janela — o moço desvia os olhos do livro, e olha para as janelas fechadas da casa à sua frente. Confuso entre o real e a ficção, volta a ler: — A cumeeira central divide, em quatro partes iguais, os ângulos que sustentam a estrutura da casa, que provavelmente, agora, é a cela da sua alma. Essa grande construção tem um muro recoberto de hera, em todo seu entorno, que a separa das outras espalhadas pelo vale, e desperta comentários curiosos por toda a região...” — Ele se assustou ao ouvir um miado e sentir o roçar do pelo macio, na parte de trás do braço. Desconfiado, ficou atento, fez um carinho no bichano e fechou o livro. Levantou-se do chão e olhou para a casa.
Voltou a monitorá-la. Parou a uma distância considerável, e, não resistiu, de pé mesmo, abriu o livro e continuou de onde estava:
— “Não mora ninguém na casa, mas sempre é possível ver o rosto de alguém em uma das janelas. Tem quem jura que viu pessoas, mais de uma, entrando e saindo; outras dizem até ter conversado com o homem que passeava pelos arredores ....” — O moço tornou a guardar o livro, pegou o binóculo e deu mais uma examinada: as quatro janelas, lá no alto, continuavam fechadas.
Há dois dias que o moço ruivo, assistente do novo delegado, investiga o casarão; tira o binóculo da sacola, rastreia, espia, mas só o que vê, são os gatos. Não é possível afirmar, mas sua intuição lhe diz que o homem procurado é um colecionador de gatos. Eram tantos, as lentes do seu telescópio já estavam com cara de gato. Mais uma olhadinha e o objeto se acomoda na sacola; o desejo de pegar o livro volta lhe coçar os dedos.
De repente, um movimento, e viu uma mulher sair pelo portão da frente e descer pela trilha, num vestido claro, na altura da canela, gola alta e mangas compridas. Surpreendido procurou controlar as batidas espaçadas do coração, quiçá dar lhe um ritmo regular. Percebeu que poderia ser mais fácil do que imaginava, sentiu como se estivesse à beira de uma descoberta que abalaria o mundo, esperou até perdê-la de vista, e antes que recuperasse o juízo, foi de encontro ao portão e o empurrou, na verdade, uma porta cinzenta de madeira estriada de pequenas fendas riscadas no comprido, um metro de largura por dois de altura, e encravada no meio do muro. Ele cedeu abrindo-se num convite e o moço entrou, era a primeira vez que ele via o que havia além dos muros.
Urzes, milhares de hastes floridas, um mar delas, na mesma direção, ondulantes ao sabor do vento. Cresceram em volta da casa tomando conta de tudo. Altas, em flores, coloridas e selvagens, em alguns trechos, ultrapassavam a cintura. A casa era circundada por uma varanda, e a percorreu dirigindo-se para os fundos. Lá, parou para entender o que via. Se não fosse o segundo piso, ele diria que a casa, em breve, seria engolida. A única peça de mobiliário era uma cadeira de balanço, de madeira, pintada de azul. Estava colocada bem próxima da beirada, mais dez centímetros e ela se perderia entre as urzes, de modo a fazer parte do colorido, que tomava conta do quintal. Gradativamente, o coração foi voltando ao normal. O moço circulou pela varanda, sentou-se na cadeira de balanço, ela estalou e ele se pôs em posição de alerta, o coração voltou a bater descompassado. Ele autocensurou-se: — Não seja tolo — voltou a se recostar, impulsionou o pé dando início ao vai e vem ruidoso pelo atrito da madeira no chão. O barulho tinha um ritmo, uma cadência que ele passou a acompanhar com a mão. Olhou para as flores e pensou que um dia de serviço e deixaria aquele lugar ideal para terminar de ler o seu livro.
Permaneceu na cadeira de balanço só apreciando beleza embalada na canção cadeirante: a tarde luzidia e colorida, os bichinhos chiantes na vegetação e o balanço, sentiu-se sonolento. Foi tomado de uma preguiça tão grande quanto os metros de área do quintal... dançando no vento. De repente despertou-se, sentiu que estava sendo vigiado, sobressaltou-se quando sentiu um gato lhe roçar na perna — mais um — pensou, e ouviu tarde demais o som do relógio bater lá dentro. Bateu quatro vezes, mas o ruído que lhe deu calafrio foi o do ferrolho do portão. Ele fora aberto.
Sem mais pensar, a não ser que não devia ser visto. Ele atirou-se para fora da varanda, por entre as urzes, e se deitou em meio a elas, de barriga para baixo, e rezou para quem quer que estivesse entrando, não fosse até a beira da varanda e olhasse para baixo. Então ouviu a leve batida na porta de tela e o rangido da cadeira de balanço quando alguém se sentou e a ouviu sussurrar para um gato. Reconheceu a voz como feminina e pôs-se a pensar por quanto tempo ela pretendia ficar na varanda. Ele estava no meio do mato, o lugar era bonito, mas era mato, havia os insetos, e nem queria pensar nos peçonhentos, suava frio, e a cantilena da cadeira de balaço perturbava lhe os ouvidos.
Ele virou a cabeça por frações mínimas de centímetros, para observar o que é dava para ser visto. Viu as pernas e o vestido claro pelo meio da canela. Viu também a cauda do felino dependurada no vestido; ela acariciava o bichano, que alternava seus miados com gritos, e depois vinha diminuindo até transformá-los em miados que logo virariam novos gritos. O suor lhe dava coceira, e os ramos floridos sobre as quais estava deitado, faziam-lhe cócegas no nariz. Sentia sede, vontade de espirrar e um desejo enorme de urinar. Pensou que fosse vomitar de medo quando o gato aumentou o tom do miado. A cadeira de balanço aumentou o volume da cantilena. Se ele soubesse que a pessoa que estava ali era um ser comum, ele jurava que a enfrentaria.
Enterrou as unhas na terra, apertou os olhos, cerrou os dentes. O desejo de sair do lugar era como um mal metafísico.
“Por que eu entrei aqui?” — pensava.
“Por que ela não se levanta e entra na casa?” — era outro pensamento que também lhe assaltava.
“Será que nunca irá embora?” — o pensamento virou uma ameaça.
“Como eu vou conseguir fugir?” — Começou procurar a razão.
“Se desse um salto e tentasse correr. Ela nem era tão alta e provavelmente tinha pernas curtas” — ele mesmo se consolava.
A cadeira silenciou quando período que medeia entre o crepúsculo e a noite o encontrou agonizante entre as urzes. — Tenho que sair daqui! — pensou com desespero e ergueu-se devagarinho até ficar acocorado de modo que seus olhos, que mal enxergavam, tivessem condição de avaliar o que estava acontecendo. E ele viu o corpo, no vestido claro, estendido ao lado da cadeira. Ela estava com um pé sob o arco do balanço, impossibilitando que a cadeira se movesse, os olhos vidrados fixos no telhado da varanda. Um fio de sangue em seu lábio inferior descendo pelo queixo. O gato negro, de pelagem lustrosa estava ao lado e se esfregava ansioso na lateral do corpo como se exigisse cuidados.
Achou uma falta de respeito o bicho se esfregar no corpo inerte, empurrou com o pé e o movimento irritou o felino que lhe acertou na altura do pescoço e gritou como se dezenas do bicho gritassem juntos. Gritos aterrorizados com algo que ele não podia ver. O moço conseguiu agarrar o gato e jogá-lo na cadeira que começou a balançar como se alguém a impulsionasse se balançando nela, e a mulher no chão completamente alheia.
O gato lutava loucamente com alguém imaginário, saltava sobre a cadeira e voltava ao chão de todas as maneiras: se enroscava em si mesmo, virava um arco, pulava novamente na cadeira, depois lutava para se soltar das próprias garras que deixavam marcas no chão, e não fugia. No movimento de pingue e pongue, ele batia no chão, e mais rápido que um raio, voltava a atacar o balanço cada vez mais acelerado. Os gritos do gato se ouviam de longe, e logo se misturaram com o som ritmado dos sapatos do moço descendo acelerado pela trilha.
Luzineti Espinha
Enviado por Luzineti Espinha em 22/06/2021